quinta-feira, 27 de junho de 2024

DILÚVIO DE FLORIANÓPOLIS - A arrasadora enchente de 1995 (Hélio Cervelin, professor)

 





 Autor: Hélio Cervelin 


Era 24 de dezembro, véspera do Natal de 1995, e eu estava com minha família no apartamento da cunhada Anna Maria, no centro de Florianópolis, esperando a chegada dos demais familiares para a ceia do Natal. 

Desde a manhã, a chuva caía sem parar, numa intensidade assustadora. Parecia que São Pedro abrira totalmente as "torneiras do céu" e esquecera-se de fechá-las. O alerta de que a situação estava ficando grave veio através do nosso sobrinho, Vicente, que chegou ao apartamento por volta das 21 horas, com a roupa toda ensopada, narrando o que vira ao atravessar a Avenida Othon Gama D'Eça: água chegando até o peito, enxurrada violenta, pessoas assustadas pelo caminho, correndo de um lado para o outro tentando se proteger enquanto fugiam do alagamento que havia tomado toda a avenida.  

Percebendo que o "mundo estava desabando", minha esposa e eu, acompanhados das três filhas, todas menores, decidimos voltar para casa antes que as coisas piorassem, sabedores de que nossa casa estava em risco por estar localizada em um bairro vulnerável. Então embarcamos no Corsa Azul Van Dyke novo e rumamos para o Bairro Santa Mônica. 

Logo na saída para a Beira-mar Norte notamos que a situação estava trágica: água por todos os lados, pistas inundadas, filas de automóveis vagarosos subindo em calçadas. Os motoristas desviavam dos carros pifados pelo caminho. E não eram poucos. Um caos total. 

Decidimos sair dessa avenida, por considerá-la muito baixa, e tentamos um novo trajeto pelo Bairro Agronômica, uma área mais elevada. Por diversas vezes subi na calçada para desviar da correnteza e das poças de lama.  Em alguns momentos tive que engatar marcha à ré para tentar um caminho menos alagado, desviando dos obstáculos que boiavam pelas ruas inundadas. Chegamos a ver um homem seminu correndo, numa movimentação desesperada de pedestres, buzinas incessantes, loucura total.   

Minhas filhas entraram em pânico e começaram a gritar de pavor. Nunca me arrependi tanto por ter saído de casa e entrado nessa perigosa aventura. Tratei de acalmá-las e buscar alternativas para retornar ao centro, sem saber se iria conseguir.  

Todos os obstáculos que eu havia ultrapassado precisei superá-los no retorno. A cada manobra que eu fazia o pânico aumentava, sempre achando que a qualquer momento o meu automóvel afundaria em algum buraco, obrigando-nos a abandonar o veículo no meio da inundação para sair a nado pelas ruas, sujeitando-nos a sermos arrastados pela correnteza.  

Conseguimos avançar até ultrapassar o Palácio da Agronômica, já no bairro Trindade, mas as poças d'água eram tantas e tão grandes que decidimos parar. E, por quase um milagre, conseguimos retornar ao nosso ponto de partida, o apartamento do qual havíamos saído, numa atitude imprudente, agora o sabíamos. Passamos uma noite tensa, com a chuva que nunca parou um instante sequer, sempre com intensidade máxima, até que, no dia seguinte pela manhã, finalmente. pudemos chegar à casa.  

A chuva havia dado uma trégua e o sol começava a mostrar seus raios meio envergonhados. Ao adentrarmos ao quintal de casa, nossa cadela Lili veio ao nosso encontro, desesperada e apavorada, mas sentindo-se aliviada pela nossa presença. Parecia querer nos contar em um minuto todas os traumas e medos pelos quais passara, sozinha em casa, sem ter a quem recorrer, e apoiando-se sobre uma mesa de brinquedos, na garagem dos fundos.  

Minha casa ficou totalmente inundada. A água chegou a atingir a altura de 60 centímetros. A geladeira e o freezer estavam recostados à parede da cozinha, em 45 graus, mas ainda funcionando. Nada mais havia a fazer a não ser arregaçar as mangas e começar a remover os colchões, abrir os roupeiros e retirar tudo de dentro, verificar as comidas atingidas na despensa, as panelas enlameadas. A lama tomara conta dos pisos, carpete, tapetes e cortinas. E os meus discos de vinil? Uma lástima! 

Enchentes 

A dor e desespero de quem “não tem nada” 

Perder tudo 

O choro a lagrima, a alma abalada 

O fim do mundo 

  

O sentimento de solidão é avassalador 

Cada batida do coração, o peito sente uma dor 

Bem lá no fundo, 

 e agora reconquista tudo de novo 

Mostrando mais uma vez a força do povo 

Respire fundo, 

e mantenha a cabeça erguida 

Tudo que é material pode ser conquistado enquanto se tem vida. 

 

   Autor: Vinicius Alceu 

  

Munidos de mangueira, baldes, vassouras, rodos e panos pusemos mãos à obra. Contando com a valiosa ajuda do amigo Dalazen e dos parentes, dentre os quais Éldio e Badina, começamos a faxina, enquanto o sol brilhava lá fora. Mas o tempo não estava firme.  

O trabalho transcorreu incansável, e todos sempre de olho nas nuvens, que pareciam querer nos fazer alguma surpresa a qualquer momento. 

Era perto das 13 horas, o piso já estava limpo, quando o tempo, após trovejar e fazer cara feia por diversas vezes, desabou novamente em uma chuva torrencial e ininterrupta, formando correntes de água próximas às calçadas, crescendo cada vez mais feito córregos deslizantes. E o nível das águas começou novamente a subir, aproximando-se aos poucos da casa, até começar a inundá-la mais uma vez. A vizinhança estava alvoroçada, cada um tentando salvar seus pertences. Havia um automóvel amarrado por uma corda a uma árvore, pois ameaçava deslizar rua abaixo.  

Desesperados perante a ameaça de nova invasão da lama, empunhávamos os rodos disponíveis e os movimentávamos vigorosa e repetidamente, empurrando as águas de volta, porta afora. Após alguns minutos de pânico as chuvas amenizaram e as águas começaram a afastar-se, baixando gradualmente.  

Lembro-me de alguns comentários da época afirmando que houve trinta e seis horas ininterruptas de chuva torrencial sobre a região da Grande Florianópolis. Foi a maior enchente que a capital sofreu. Muros desabaram, árvores caíram, havia lama por todos os lados! Uma paisagem de guerra! A Rua José Boiteux, próxima ao Morro da Mariquinha, virou uma grota devido à erosão que levou tudo para a Avenida Mauro Ramos. Cinquenta municípios da região foram atingidos, gerando 28 mil desabrigados, provocando 40 mortes.  

Ao consultar, hoje, um jornal daquela época, constatei a seguinte informação:  

"Além da precipitação acumulada – das 9h do dia 24 até as 10h do dia 25 choveu cerca de 165 milímetros, acima da média mensal, que era de cerca de 140 milímetros –, outros fatores contribuíram para que o resultado fosse tão trágico. A chuva incessante coincidiu com a maré alta e a falta de manutenção de galerias pluviais e de limpeza de rios, tanto que lugares historicamente preservados de enchentes – como a cidade de Palhoça, acabaram submersos. Em Florianópolis, as regiões mais atingidas foram Trindade, Agronômica, Itacorubi, Saco dos Limões e Centro. Na madrugada do dia 25, as rodovias SC-401 (para o norte da Ilha) e SC-404 (para o sul), foram interditadas."   

(http://www.tudosobrefloripa.com.br/index.php/desc_noticias/20_anos_depois_ifsc _relembra_enchente_de_1995_que_matou_tres_e_alagou_a_reg) 

  

Muito se perdeu: móveis, roupas, livros, alimentos, prédios públicos, casas, e vidas humanas. Mas ficou uma lição: não se pode negligenciar jamais com a natureza. É preciso respeitá-la e entender a sua lógica para evitar sofrimentos.