quarta-feira, 3 de junho de 2020

PAPAI, PARA QUE SABER SUA HISTÓRIA? (Hélio Cervelin,, 02 Junho 2020)




Autor: Hélio Cervelin

Queridas filhas,
Nossa relação paterno-filial já ultrapassou os trinta anos para a caçula, beirando os quarenta anos para as duas que nasceram antes. E essa constatação me leva a  imaginar ou perguntar o quanto vocês conhecem ou desconhecem sobre seu próprio pai. A impressão que tenho é a de que me conhecem muito pouco ou quase nada.
Quase septuagenário, posso afirmar que já vivi muitíssimas e variadas situações ao longo do tempo, e tenho muitas histórias para contar  para quem estiver disposto a me  ouvir. Nesses quase quarenta anos, tenho a impressão de  que vocês sempre se "bastaram" e nunca sentiram a necessidade de conhecer melhor o seu agora "velho" pai: sua infância, suas dores e angústias, erros e acertos, desafios enfrentados e superados, e derrotas sofridas e atuais  preocupações.
Diante  da loucura frenética do mundo moderno, as pessoas, de um modo geral, aí incluídos pais e filhos, quase nunca têm tempo para melhor se conhecerem. Antes era a "bendita" TV que nos tomava toda a atenção. Depois, vieram outros instrumentos de alienação e lazer, até chegarmos ao poderoso smartphone, com seus torpedos, Whatsapp, Instagram, Facebook e os infindáveis games, além de dezenas de outros entretenimentos, suficientes para eliminar de vez o diálogo familiar. Assim, neste mundo de desvarios, as atenções e  interesses dos jovens estão voltados, exclusiva e preferencialmente para suas "tribos", para o tênis da melhor marca, as roupas da moda, as publicações diárias no Instagram, a última live, as baladas regadas a energéticos misturados ao álcool, completadas com sexo, drogas e noitadas sem dormir, trocando a noite pelo dia e o dia pela noite. Mas, e o futuro? Quem está pensando no futuro?
Vocês não sabem - e provavelmente não têm interesse em lembrar ou ficar sabendo - que seu pai fez parte da geração de 1968, em que a juventude saiu, literalmente, às ruas para protestar contra a ditadura militar, em manifestos por mais liberdade, exigindo a volta para casa dos jovens presos e torturados e dos líderes  políticos desaparecidos, e pedindo o fim do regime de arbítrio na sociedade brasileira, correndo todos os riscos que essa luta oferecia.
Vocês também não sabem que, restauradas parcialmente essas liberdades democráticas após 21 anos de silêncio, e após a perda de amigos, professores e outras personalidades, no início da década de 1980, seu pai e sua geração ainda tiveram que sair às ruas para exigir a restauração das eleições diretas para Presidente da República, intento só concretizado cinco anos depois, nas eleições de 1989, ainda com um pleito viciado pelo poder da mídia, com ranços da ditadura e da censura, desacostumada das relações éticas e democráticas.
Não devem se lembrar, pois eram crianças na época, que a geração de seus pais, ajudada pelos jovens de então, se rebelou contra os desmandos do primeiro presidente eleito por eleições diretas após a ditadura, Fernando Collor de Mello, o qual fez por merecer o seu  impedimento (impeachment), em 1992, após muitas manifestações nas ruas pelos chamados "Caras Pintadas", clamando por sua destituição.
Não devem ter consciência também de que a luta política pela conquista e manutenção da cidadania, da democracia e das liberdades exige insistente vigilância e diuturna organização dos cidadãos, por meio das entidades políticas e sociais, especialmente os sindicatos, a ponto de, em nosso país - após mais de uma década de paz social - o monstro do fascismo ressurgiu, em 2013, para derrubar uma presidenta da república eleita democraticamente, e sem nenhum crime comprovado. Vale lembrar que seu vice e sucessor, o golpista e traidor Michel Temer, também foi processado (por crimes comprovados), livrando-se do  impeachment por duas vezes, em 2017, precisando, para isso, "comprar" parte dos congressistas do grupo chamado de Centrão, acostumado a fazer "qualquer negócio", como receber benesses financeiras e cargos públicos distribuídos a seus membros.
Já em 2014, havia surgido uma operação policial denominada Lava Jato (sic), liderada por um  juiz de primeira instância e pouco afeito aos estudos da língua portuguesa, treinado nos EUA, o qual, agindo seletivamente também como investigador do Ministério Público, implantou o terror do "denuncismo" a qualquer preço e bem remunerado no país, mandando encarcerar um grande número de membros do Partido dos Trabalhadores (PT),  prendendo também, sem crime comprovado, o seu líder máximo e presidente do país por oito anos consecutivos, Luiz Inácio Lula da Silva, e deixando livres diversos expoentes de outros partidos, apesar dos vários indícios de crimes não investigados, a exemplo do ex-presidente FHC, este por ser "nosso aliado".
Vocês ignoram que o seu pai, já cansado das lutas, precisou voltar à batalha, agora, a partir do governo golpista de Temer, e continuado na eleição de Bolsonaro em 2018, para tentar impedir o retorno dos dias sombrios do passado, retorno este consubstanciado na perseguição às minorias, na anulação dos Direitos Humanos e na entrega a países estrangeiros dos bens pertencentes ao povo brasileiro. Em seu projeto de privatização estavam desde o petróleo do subsolo e suas refinarias, passando por tecnologias da aeronáutica e da indústria da construção civil, e pelo desmonte de estatais e das empresas privadas nacionais mais importantes. Tudo isso praticamente concretizado com a anuência dos demais poderes da República, sob o olhar perplexo da sociedade civil.
Vocês  ainda não tomaram consciência de que, a continuar esta situação, muito em breve nosso país terá desnacionalizado todas as suas riquezas, e nosso povo será despojado dos seus poucos bens e transformado em escravo das transnacionais, tornando-se uma simples colônia rural, dependente das tecnologias estrangeiras, e pagando caro por elas. Sem contar que, no ritmo em que as tecnologias estão evoluindo, muito em breve as máquinas altamente tecnológicas estarão realizando todas (ou quase todas) as tarefas que os humano desempenham até aqui.
Não bastassem todos os problemas relatados, a sociedade brasileira está contaminada por um movimento político de extrema-direita, liderado pelo presidente Bolsonaro, que impõe uma onda de nazi-fascismo, a qual abala nossas instituições, espalha mentiras, estabelece um "Estado Policial", pondo em risco as liberdades e pretendendo enterrar de vez nossa democracia.
Nossa economia, por sua vez, afunda mais a cada dia. E para agravar a situação, estamos sendo invadidos por uma pandemia de proporções planetárias, a COVID 19, que já dizimou mais de cem mil vidas humanas só nos Estados Unidos, mais de trinta mil aqui em nosso  país, sem falar da Europa e das demais regiões do planeta. Enquanto isso, nosso Presidente da República quase nada faz para minimizar o grave problema, chegando a chamar essa tragédia de "gripezinha" que não precisa de maiores cuidados. Já demitiu dois ministros da saúde, e no momento atua com um nome interino, que nem da área é, pois se trata de um militar de alta patente.
Por isso, minhas filhas, ouçam o que o seu pai tem a dizer. Não são apenas histórias políticas que tenho para contar. Minha família é numerosa, de imigrantes, que têm muitas histórias que valem ser ouvidas. Conheçam um pouco sobre seus antepassados e tentem aprender com suas vivências de sofrimentos, de lutas e superação. Ouçam os conselhos dos que chegaram antes. Eles  são vivência pura, uma experiência ávida por trocar de mãos, de pensamento e de coração. E não sabemos quanto tempo ainda teremos para isso.


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