
Autor: Hélio Cervelin
Queridas
filhas,
Nossa
relação paterno-filial já ultrapassou os trinta anos para a caçula, beirando os
quarenta anos para as duas que nasceram antes. E essa constatação me leva
a imaginar ou perguntar o quanto vocês
conhecem ou desconhecem sobre seu próprio pai. A impressão que tenho é a de que
me conhecem muito pouco ou quase nada.
Quase
septuagenário, posso afirmar que já vivi muitíssimas e variadas situações ao
longo do tempo, e tenho muitas histórias para contar para quem estiver disposto a me ouvir. Nesses quase quarenta anos, tenho a impressão
de que vocês sempre se "bastaram"
e nunca sentiram a necessidade de conhecer melhor o seu agora "velho"
pai: sua infância, suas dores e angústias, erros e acertos, desafios
enfrentados e superados, e derrotas sofridas e atuais preocupações.
Diante da loucura frenética do mundo moderno, as
pessoas, de um modo geral, aí incluídos pais e filhos, quase nunca têm tempo
para melhor se conhecerem. Antes era a "bendita" TV que nos tomava
toda a atenção. Depois, vieram outros instrumentos de alienação e lazer, até
chegarmos ao poderoso smartphone, com
seus torpedos, Whatsapp, Instagram, Facebook e os infindáveis games, além de dezenas de outros
entretenimentos, suficientes para eliminar de vez o diálogo familiar. Assim,
neste mundo de desvarios, as atenções e
interesses dos jovens estão voltados, exclusiva e preferencialmente para
suas "tribos", para o tênis da melhor marca, as roupas da moda, as
publicações diárias no Instagram, a última live,
as baladas regadas a energéticos misturados ao álcool, completadas com sexo,
drogas e noitadas sem dormir, trocando a noite pelo dia e o dia pela noite. Mas,
e o futuro? Quem está pensando no futuro?
Vocês
não sabem - e provavelmente não têm interesse em lembrar ou ficar sabendo - que
seu pai fez parte da geração de 1968, em que a juventude saiu, literalmente, às
ruas para protestar contra a ditadura militar, em manifestos por mais liberdade,
exigindo a volta para casa dos jovens presos e torturados e dos líderes políticos desaparecidos, e pedindo o fim do regime
de arbítrio na sociedade brasileira, correndo todos os riscos que essa luta
oferecia.
Vocês
também não sabem que, restauradas parcialmente essas liberdades democráticas
após 21 anos de silêncio, e após a perda de amigos, professores e outras personalidades,
no início da década de 1980, seu pai e sua geração ainda tiveram que sair às
ruas para exigir a restauração das eleições diretas para Presidente da
República, intento só concretizado cinco anos depois, nas eleições de 1989,
ainda com um pleito viciado pelo poder da mídia, com ranços da ditadura e da
censura, desacostumada das relações éticas e democráticas.
Não
devem se lembrar, pois eram crianças na época, que a geração de seus pais,
ajudada pelos jovens de então, se rebelou contra os desmandos do primeiro presidente
eleito por eleições diretas após a ditadura, Fernando Collor de Mello, o qual
fez por merecer o seu impedimento (impeachment), em 1992, após muitas
manifestações nas ruas pelos chamados "Caras Pintadas", clamando por
sua destituição.
Não
devem ter consciência também de que a luta política pela conquista e manutenção
da cidadania, da democracia e das liberdades exige insistente vigilância e diuturna
organização dos cidadãos, por meio das entidades políticas e sociais, especialmente
os sindicatos, a ponto de, em nosso país - após mais de uma década de paz
social - o monstro do fascismo ressurgiu, em 2013, para derrubar uma presidenta
da república eleita democraticamente, e sem nenhum crime comprovado. Vale
lembrar que seu vice e sucessor, o golpista e traidor Michel Temer, também foi
processado (por crimes comprovados), livrando-se do impeachment
por duas vezes, em 2017, precisando, para isso, "comprar" parte dos
congressistas do grupo chamado de Centrão, acostumado a fazer "qualquer
negócio", como receber benesses financeiras e cargos públicos distribuídos
a seus membros.
Já
em 2014, havia surgido uma operação policial denominada Lava Jato (sic), liderada
por um juiz de primeira instância e pouco
afeito aos estudos da língua portuguesa, treinado nos EUA, o qual, agindo
seletivamente também como investigador do Ministério Público, implantou o
terror do "denuncismo" a qualquer preço e bem remunerado no país,
mandando encarcerar um grande número de membros do Partido dos Trabalhadores
(PT), prendendo também, sem crime
comprovado, o seu líder máximo e presidente do país por oito anos consecutivos,
Luiz Inácio Lula da Silva, e deixando livres diversos expoentes de outros
partidos, apesar dos vários indícios de crimes não investigados, a exemplo do
ex-presidente FHC, este por ser "nosso aliado".
Vocês
ignoram que o seu pai, já cansado das lutas, precisou voltar à batalha, agora,
a partir do governo golpista de Temer, e continuado na eleição de Bolsonaro em
2018, para tentar impedir o retorno dos dias sombrios do passado, retorno este
consubstanciado na perseguição às minorias, na anulação dos Direitos Humanos e
na entrega a países estrangeiros dos bens pertencentes ao povo brasileiro. Em
seu projeto de privatização estavam desde o petróleo do subsolo e suas
refinarias, passando por tecnologias da aeronáutica e da indústria da
construção civil, e pelo desmonte de estatais e das empresas privadas nacionais
mais importantes. Tudo isso praticamente concretizado com a anuência dos demais
poderes da República, sob o olhar perplexo da sociedade civil.
Vocês ainda não tomaram consciência de que, a
continuar esta situação, muito em breve nosso país terá desnacionalizado todas
as suas riquezas, e nosso povo será despojado dos seus poucos bens e
transformado em escravo das transnacionais, tornando-se uma simples colônia
rural, dependente das tecnologias estrangeiras, e pagando caro por elas. Sem
contar que, no ritmo em que as tecnologias estão evoluindo, muito em breve as
máquinas altamente tecnológicas estarão realizando todas (ou quase todas) as
tarefas que os humano desempenham até aqui.
Não
bastassem todos os problemas relatados, a sociedade brasileira está contaminada
por um movimento político de extrema-direita, liderado pelo presidente
Bolsonaro, que impõe uma onda de nazi-fascismo, a qual abala nossas
instituições, espalha mentiras, estabelece um "Estado Policial", pondo
em risco as liberdades e pretendendo enterrar de vez nossa democracia.
Nossa
economia, por sua vez, afunda mais a cada dia. E para agravar a situação,
estamos sendo invadidos por uma pandemia de proporções planetárias, a COVID 19,
que já dizimou mais de cem mil vidas humanas só nos Estados Unidos, mais de
trinta mil aqui em nosso país, sem falar
da Europa e das demais regiões do planeta. Enquanto isso, nosso Presidente da
República quase nada faz para minimizar o grave problema, chegando a chamar
essa tragédia de "gripezinha" que não precisa de maiores cuidados. Já
demitiu dois ministros da saúde, e no momento atua com um nome interino, que
nem da área é, pois se trata de um militar de alta patente.
Por
isso, minhas filhas, ouçam o que o seu pai tem a dizer. Não são apenas
histórias políticas que tenho para contar. Minha família é numerosa, de
imigrantes, que têm muitas histórias que valem ser ouvidas. Conheçam um pouco
sobre seus antepassados e tentem aprender com suas vivências de sofrimentos, de
lutas e superação. Ouçam os conselhos dos que chegaram antes. Eles são vivência pura, uma experiência ávida por
trocar de mãos, de pensamento e de coração. E não sabemos quanto tempo ainda
teremos para isso.
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