segunda-feira, 1 de junho de 2020

SER PAI, ENTENDER UM PAI (Hélio Cervelin, 12 ago 2019)



Autor: Hélio Cervelin

A vida humana contém muitos  paradoxos, sendo um deles o de somente conseguirmos reunir as condições para entender o que é ser pai depois que nos tornamos pais, ou até mesmo depois de nos tornarmos avôs.
O meu pai era um brasileiro de origem italiana, alto, forte e corajoso, que teve morte prematura causada por um AVC, em 1963, aos quarenta e seis anos de idade. Não tinha ainda nenhum neto, e partiu antes que eu completasse os meus treze anos de idade, início de minha adolescência. Era um agricultor, mas tinha diversas outras habilidades ou profissões. Tenho muitas lembranças boas de nossa vida no sítio.
Um dos  momentos inesquecíveis da nossa convivência foi quando ele me levou para a floresta de sua propriedade, no alto de uma colina, situada além das roças já plantadas,  onde me deixou passar o dia com ele, fazendo-lhe companhia.  Naquele dia, à força de golpes de machado, ele derrubava árvores de madeira de lei e as esquadrejava para transformá-las em troncos retos, destinados a serem os pilares da nova casa de madeira que ele mandaria construir.
As casas dos descendentes de italianos - principalmente - não  poderiam prescindir jamais do porão, que era o local em que se armazenava, em enormes pipas (barricas) de madeira,  o vinho produzido no próprio sítio. Lá também era o local utilizado  pela família para destrinchar os suínos e fazer toucinho, banha, salame e linguiças, e também para a produção de queijos artesanais com o leite tirado das vacas leiteiras do sítio. O trabalho era feito sobre fortes mesas de madeira maciça, todos munidos de afiadas facas e apoiados por estranhas máquinas de moer carne e embalar as linguiças.
Lembro-me de que ele, com o intuito de me distrair e não ficar exposto ao perigo de algum acidente enquanto realizava sua tarefa, cortou a base de um longo cipó que pendia de uma alta árvore não muito distante, transformando-o num belo balanço. Assim, agarrando com as duas mãos aquele cipó, pude ficar  me balançando,  indo e voltando, tal qual um jovem Tarzan das selvas africanas, personagem este que eu só conheceria mais tarde, ao frequentar um cinema.
Aquele dia foi para mim de uma grande emoção de uma enorme realização. Só não consigo lembrar o porquê dentre tantos irmãos que eu possuía - um total de dez -  só eu tive o privilégio de estar com ele naquele dia, já que, quando nasci, a família dos meus pais já era numerosa: seis filhos. Com certeza, os meus irmãos estavam em outras atividades, adultos que já eram.  
O nome do meu pai era Albino, e quando foi convocado  para as Forças Armadas, em 1941, aos vinte e poucos anos, já era casado com minha mãe, Otilia. Lembro-me de ter lido algumas cartas de amor que eles trocaram durante a permanência dele num quartel do Exército em Curitiba, onde ficou por quase dois anos, tendo contraído febre tifoide, o que  impediu que fosse convocado para o front da Segunda Grande Guerra Mundial.
Sua permanência nas Forças Armadas permitiu-lhe adquirir muitas habilidades, a  ponto de tornar-se líder em nossa comunidade denominada Linha Vitória, no então município de Capinzal, neste estado de Santa Catarina. Era ele o presidente da comissão de diáconos da capela católica e também coordenador do coral da igreja. Era ele também quem comandava a reza do rosário aos domingos nos quais não havia celebração de missa. Padres, naquela comunidade e época, eram raros, e só vinham ao local para batizar ou realizar casamentos. Era ele, também, quem realizava o sepultamento dos mortos com exéquias celebradas em latim. Ele também organizava as quermesses da comunidade.
Meu pai tinha noções de primeiros socorros, aplicando injeções nos doentes, ao mesmo tempo em que atuava como Veterinário, aplicando vacinas nos animais da vizinhança, além de tratar das doenças do gado, realizando também castrações em bois e porcos, e aferramento de cavalos. Chegou a atuar como ferreiro e marceneiro. Também era produtor de vinhos, melado, açúcar e mel. Ele possuía uma gama de ferramentas para as suas mais variadas atividades.
Não bastassem todas essas ocupações, ainda exercia o cargo de "Inspetor de Quarteirão", uma espécie de subdelegado distrital (comunitário) de polícia. Todos os conflitos entre vizinhos acabavam parando em suas mãos. Talvez por isso mesmo, pela liderança exercida, tenha sido candidato a  vereador pela coligação PSD/PTB, na década de 1950/60. Foi uma espécie de Super-Homem, multidisciplinar.
Era um homem de ética rígida, temente a Deus e austero em sua conduta, mas de  "pavio curto".  Passou por muitos sofrimentos no difícil trabalho da lavoura, uma vez que o solo era  pedregoso e íngreme e o clima adverso, fazendo muito frio naquela região, cujas intempéries chegavam a comprometer as safras de trigo, milho e feijão. Normalmente, quando o clima ajudava e a safra era boa, os preços caíam. Não havia preços mínimos regulados pelo governo naquela época. Muito menos o "seguro-safra", como  é hoje em dia.
Perdeu dois filhos de dois anos e meio de idade devido à difteria (conhecida na época por crupe), uma doença nefasta, que trancava as vias respiratórias, e para a qual não havia vacinas na época. Situações traumáticas, só absorvidas devido à ação da religião católica, que para tudo tinha uma explicação: a vontade de Deus.
Comparando o mundo daquela época com as facilidades de hoje, trazidas pela tecnologia, posso afirmar que o meu pai e todos os pais agricultores da época foram grandes heróis, magníficos heróis! E também escravos do trabalho braçal. Uma época de angústias causadas por doenças e acidentes no trabalho só compreendida por quem viveu naqueles dias.  
Muito obrigado, meu querido pai! A cada dia que passa te entendo, te amo e te respeito mais e mais.

"Aprendemos a ser filhos depois que somos pais. Só aprendemos a ser pais depois que somos avós..."                                               (Afonso Romano de Sant'Anna in Para quem é pai).
                                                                                             





2 comentários:

  1. Sabe querido colega Hélio, sua linda história emocionante, me remeteu ao convívio de minha família numerosa de nove filhos e muitas passagens não diferentes a que vc passou , e parece um filme feito por nós e de nós , muito bom dar valor as coisas que tem valor neste mundo passageiro , parabéns pela emoção aqui deixada.

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