
Autora: Elizete Menezes
Era uma menina nascida no interior, originária de uma família humilde,
criada na roça, no meio de animais e plantações de amendoim, aipim, café...
Nos dias de colheita lá estava eu, em
cima dos montes de amendoim. Meu pai lá me colocava, enquanto ele, minha mãe, meus
irmãos e vizinhos descascavam o cereal.
Muito pequena, mas feliz, eu era a
garotinha que acompanhava a família em seus afazeres. Era a caçula de sete irmãos
e temporã. ”Temporona", como diziam lá no interior.
Menina alegre, eu gostava de estar
junto de todos, e me fazia presente no engenho com minha mãe, raspando a
mandioca pra fazer a farinha. Enquanto minha mãe fazia a raspagem, eu
observava o boi no cabresto a rodar o moinho para que á farinha fosse
processada, enquanto a tafona era tracionada pelo animal andando em círculos.
E não era só isso: eu também gostava de ir até a fonte com minha mãe para lavar
roupas, e ficava observando muitas mulheres ajoelhadas ali a lavar. Eu me
encantava e até me assustava com os sapos e as cobras d'água que às vezes
ali apareciam. Era uma garotinha do interior que, como tantas outras, cresceu numa
região que não tinha energia elétrica e nem
água encanada. O abastecimento para o consumo vinha de poços
artesanais.
Naquela época, as residências tinham
o seu poço nos fundos do quintal. A água
era tirada com um balde e com ajuda de uma corda. A luz era de velas ou
"pombocas", que era como chamavam a um tipo de lâmpada (lampião), que
funcionava com querosene. Televisão e geladeira eram praticamente desconhecidas;
rádio? Apenas um do tipo que só funcionava com pilhas e pelo qual minha mãe acompanhava
as novelas, ouvia música e se entretinha durante os afazeres de casa.
Essa menina do interior foi feliz e
também foi triste; dormia com medo, acordava assustada; era difícil a
situação, mas nunca passou fome nem frio. Seu pai, aposentado muito jovem da
mina de carvão, trabalhava como vendedor de peixes de, casa em casa, nas ruas
da cidadezinha, com sua carroça puxada pelo seu belo cavalo, pra dar
conta de sustentar sua família.
A mamãe cuidava dos afazeres da casa,
da horta, das galinhas. Era uma chácara grande, com pomar, muitas frutas: laranjas,
bananas, goiabas, pitangas, limões. E a horta da mamãe era muito bela:
salsinhas, cebolinhas e tantos outros temperos, tudo cuidado com muito carinho.
A noite sempre chegava cedo, e
a escuridão era sempre iluminada pelas estrelas na época de tempo firme, e pelas
belas luas: cheia, minguante, crescente, nova. O céu sempre foi uma atração para
essa menina que contava as estrelas, que se encantava com cada lua avistada ao
longe. Ela, sempre muito saltitante e feliz, brincava de tudo e com todos. Tão
pequena e com medos constantes!
Seu pai era seu herói, mas muitas
vezes o via como um monstro; sua mãe, a heroína sofredora que apanhava
por não obedecer ao machista do seu esposo; que sofreu calada uma vida toda;
que nunca reclamou, e que era massacrada, e muitas vezes na rua foi jogada; que
dormiu ao relento, e que, muitas vezes, a estrebaria foi seu abrigo. Mas a menina
não saía do lado dela. E ela era tão pequenina, e suas lembranças mais fortes foram gravadas entre os seus cinco e os oito
anos de idade. As brigas se sucediam, e ela estava sempre presente: acudiu, socorreu e protegeu, impedindo
que o mal maior acontecesse. Mas era seu
pai, e os sentimentos se misturavam. E assim o tempo passou. Seus irmãos,
crescidos, cada um procurou seu destino.
Até que, certo dia, uma das irmãs fez
uma proposta para o pai e para a mãe. Ela morava em uma cidade grande, e os
convidou para irem morar com ela e os demais irmãos, argumentando que já era
tempo de mudar de vida. Era tudo que a mamãe queria. Algum tempo depois, mamãe
convenceu o meu pai e colocaram tudo à venda. E partiram pra cidade grande,
onde já havia luz, água, TV e geladeira. Que sonho! Mas não tinha mais cavalo, carroça,
charrete. Os tempos eram outros.
A menina de 9 anos veio primeiro, com
a irmã, pra cidade grande, pra casa nova, tudo novo: novos amigos, nova escola,
uma nova vida. E seus pais vieram depois. No começo o pai estranhou porque o seu
lugar sempre foi o interior, mas a mãe estava rejuvenescida, alegre, uma vida
que certamente sonhou ter algum dia. E eles não brigavam mais, saíam juntos,
visitavam lugares, procuravam casas para comprar. Senti que ele só se realizou
quando comprou a casa para a família.
Era uma casa humilde, pequena, mas em
um bairro bom, em vista da que tinha no interior. Mas era deles. Foi um bom
pai. Não foi um ótimo marido, mas foi assim que ele foi criado, pra ser o
macho, o comandante. Na época deles a criação era outra. A mãe, uma guerreira,
obediente e sofredora, mas que ficou ao lado dele até que a morte os separasse.
Ele viveu pouco, 54 anos, um jovem velho da época. Foi muita luta, muito
sofrimento, trabalhou no pesado.
A menina perdeu o pai aos doze anos,
com lembranças de uma infância conturbada, mas um pai que dava carinho, que
dava colo, que ela amava. E foi uma perda, a primeira perda. Teve que lidar
com a saudade, já desde nova. Muitos sonhos, muitos choros, muita dor. As
lembranças vinham e a menina tentava apagá-las, porque só queria era perdoar
seu pai, ele foi bom pra ela.
Foram tempos de conflito interno, de
saudades de tristeza. Mas ali estava sua rainha, sua guerreira, que
cuidava com zelo dela e dos irmãos. Sua infância era outra, agora, já com
outros amigos, outras brincadeiras. Mas foi saudável, foi muito intensa; a rua
era de muitas crianças que brincavam todas juntas.
E o tempo passou, como tudo passa. A
menina virou adolescente tímida, mas cheia de alegria, sorridente, cheia de
vontades e caprichos, mas nunca esqueceu sua origem, sua essência. Menina
adolescente que errou, acertou, estudou, se apaixonou muitas vezes; que namorou
muito, dançou, curtiu sua adolescência.
Virou mulher e, depois de tantos
amores e desamores, ela tornou-se mãe muito jovem. Aos vinte anos, o primeiro
filho, Darlan; o segundo filho ela o teve aos 23 anos, o Diogo. Algum tempo
depois se separou. Ficou sete anos
separada do pai de seus filhos, e reataram. E então teve o terceiro filho, Gabriel.
Uma tentativa que poderia ter dado
certo, mas não deu. Quatro anos após o nascimento do terceiro filho, separam-se. E ela
criou seus filhos com dificuldades. Sim, talvez tenha errado muitas vezes, por excesso
de zelo, por amor, mas nunca desistiu, foi à luta. Poderia ter feito tudo
diferente. Poderia, mas não fez. E não se arrepende, porque aprendeu com
sua mãe que não se deve se arrepender do que se fez, mas, sim, do que se deixou
de fazer.
Foi difícil, mas foi
gratificante. Teve força e fé, cuidou da mãe até a morte, perdeu um filho pro
acaso, ergueu-se da tristeza, levantou-se do abismo, e segue o caminho.
Hoje tem dois netos: Kamile e Diogo,
razão essa pra tanta superação, pra tantos sorrisos frouxos. Razão para a qual
não precisa explicação.
Viver é aceitar pra ser feliz, é ser
feliz pra aceitar viver.
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