Autora: Mara Lúcia Bedin
Era 1979, ano de grandes mudanças políticas no Brasil. Foi
aprovado no Congresso Nacional um projeto de lei de anistia aos condenados por supostos crimes políticos praticados na ditadura militar. A anistia foi ampla, geral e irrestrita, depois de uma longa campanha popular. Eu era estudante da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), e assistia daquele palco privilegiado as manifestações de "boas vindas" a muitos dos exilados políticos que finalmente voltavam ao país. O aeroporto
internacional do Galeão, hoje Tom Jobim, localizado na ilha do
Governador, era de fato a principal porta de entrada dos nossos expatriados, recém
anistiados. A proximidade do Campus Universitário propiciava o
deslocamento dos alunos; daqueles mais politizados, para recepcionar
os ilustres personagens. Vivíamos a promessa da concretização
da abertura política, que se manifestava na chegada destes homens e destas
mulheres. Na UFRJ era comum que um colega, ou outra pessoa qualquer,
comunicasse de repente a chegada dos desterrados famosos. A noticia corria de
boca a boca e, à medida que esta se espalhava, os alunos se dirigiam ao evento.
A chegada de Luis Carlos Prestes em 20 de outubro impressionou enormemente pela
multidão que o aguardava. O aeroporto, como sempre, já estava
lotado por militantes de organizações políticas, incluindo importantes sindicatos de várias categorias de trabalhadores. As
pessoas se apertavam na multidão, já apertadas que estavam pela emoção, lado a lado, buscando
um melhor lugar para poder avistar o notável que estava por chegar. Não podiam
avançar muito, porque os acompanhavam com relativa proximidade um corredor
formado pela Polícia Militar com seus
escudos transparentes, com suas botas, capacetes, cassetetes e coisas assim. Estavam lá as duas distintas massas humanas, frente a frente. O Galeão
cheio, praticamente lotado, e o aparato policial montado causava um grande frisson.
Um dos grupos esperava por Prestes; e o outro aguardava o momento oportuno para intervir, diante de algum movimento de
descontrole por parte das lideranças dos primeiros; era grande o risco de serem soltos os cães; assim como os cassetetes e outras armas entrarem em ação. Os minutos seguiam tensos. Diante do medo que se intensificava, o povo cantava o Hino
Nacional, de braços dados. Percebia-se os peitos arfando, e
na expressão do rosto de cada um, a sensação de ser parte da história que se estava desenhando. Talvez por
sentirem-se assim mais "brasileiros" e de estarem vivendo conjuntamente aquele momento de
conquistas tão importantes.
De repente alguém anuncia: “--- é ele! Chegou!".
Prestes foi o maior líder comunista da história do Brasil. Originalmente tenente do exército no RS, liderou a revolta de parte de seus camaradas de armas e iniciou sua famosa Coluna Prestes, percorrendo 25 mil quilômetros pelo interior do Brasil, em revolta contra a República montada pelos grandes produtores rurais que a comandavam. Depois passaria a maior parte de sua vida no exílio, comandando de lá o seu Partido Comunista Brasileiro. Finalmente esta liderança tão importante voltava para casa.
Os dois grupos se agitam. A multidão gritava o nome dele e
há um momento de grande excitação. A turba se comprime para entrar no
aeroporto, o burburinho cresce. A polícia se coloca na postura! Dentro do
aeroporto alguém, por acaso ou intencionalmente, para abafar o som produzido
pela massa, aumenta o volume da música ambiente do recinto. Tocava naquele
momento a canção "O Bêbado e a Equilibrista", na voz Elis Regina, composta por Aldir Blanc e
João Bosco, poema que cita a volta do Betinho, “o irmão de Henfil”, assim como homenageia “...Marias e Clarices”, em referência às esposas dos militantes que forram morto na prisão, como o jornalista Wladimir Herzog no ano de 1975. O som da canção ressoava alto no saguão e tomou conta do espaço, fazendo com que o povo que esperava
no lado de fora conseguisse ouvi-la perfeitamente.
Então as vozes dos presentes
se somaram à de Elis. Formou-se um canto uníssono lindíssimo, nítido e forte, expressando a esperança de todos no futuro do país, de um Brasil mais "brasileiro",
enquanto Prestes era conduzido nos braços da multidão. Foram momentos
encharcados de comoção até às lagrimas, porque todos ali presentes, independentes
de suas ideias políticas, demonstravam que tinham o mesmo anelo; a liberdade de
pensar, falar e decidir o futuro do Brasil.
Belíssimo relato, Mara! Um resgate de nossa história, que muitos desconhecem, seja por falta de informação, seja porque são jovens e não viveram essa situação dramática dos tempos da ditadura e da anistia.
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