Autora: Nídia Nóbrega
Poderia ser em qualquer lugar, mas terá
de ter aquele cheirinho de alfazema recém-colhida. Cheiro que sempre fez parte da minha
vida. Minha memória olfativa é maior que minha memória visual. Lembro das pessoas pelo cheiro e isso
fica guardado. Muitas vezes na rua, sinto o perfume e fico olhando em volta
procurando quem esse cheiro me lembrou.
Lembro da alfazema porque era o cheiro
do travesseiro da minha infância, colocado na cabeceira daquela enorme cama de
ferro, com lastro preenchido por um colchão de lã de carneiro e uma colcha de
retalhos todos feitos por minha mãe. E nesse pequeno espaço – não mais do
que 40 por 80 centímetros - repousava essa cabeça preenchida por mil
caraminholas, sonhos, medos, frustrações e culpas ao final do dia, depois de um
milhão de atividades. Mas esse cotidiano era singular para
uma menina de nove ou dez anos.
Além da vida de criança, muito cedo
conheci as obrigações domésticas após minha mãe ficar paralítica por lesões da
coluna, cuja cura levou longos seis anos para ser encontrada. Então – uma infância com pouco tempo
para criancices exigia espaço mental enorme para colocar todos os conflitos
decorrentes dessa realidade. Enquanto outras brincavam eu dava injeções, fazia
comida e limpava a casa, além de ir à escola. E o travesseiro cheiroso era o espaço
maior de procurar e encontrar – quando encontrasse – respostas às minhas
questões diárias. Por ser hiperativa, meio briguenta, que falava mais palavrões que meninos
e não se contentava com afetos truncados e socialmente corretos, os conflitos
internos e externos eram exponencialmente maiores do que qualquer criança.
E o travesseiro era o campo santo para
sepultar vontades nunca satisfeitas, sonhos irrealizáveis, espaços vazios de
afeto e de segurança. Que criança se sentiria segura num lugar onde a mãe
poderia morrer disso ou daquilo, tantas vezes ia e voltava do hospital? Lá eu chorava, rezava, sentia raiva - e
culpa de ter raiva - solidão, saudade, e fantasiava um mundo que não
fosse aquele cheio de exigências com as quais eu não tinha forças de lidar. Era no meu travesseiro com cheiro de
alfazema, cujos raminhos eram colocados dentro do forro para perpetuar o bom
cheiro, que vivia o meu mundo particular. Não havia escolha. Até mesmo porque
sestear, que eu odiava, era obrigada a fazer.
Foram anos dormindo na mesma cama e no
mesmo travesseiro. E o cheiro de alfazema tinha significado de pausa e
descanso. Ou de abandono ou de resgate. O que era raro num espaço árido de
olhares mais aprofundados para os pequenos que não fosse comida, roupas, escola
e recomendações infindáveis de bom comportamento.
Hoje, habitando outros mundos e depois
de dormir em muitos travesseiros, sempre que escolho a cama para administrar as
emoções pendentes, chorar perdas, medos ou buscar respostas, fica ainda uma
vontade enorme de sentir o cheiro da alfazema. Não dessas de aromatizantes industrializados
compradas em perfumarias. Mas daquelas folhinhas que eram costuradas num
bolsinho da capa do travesseiro e substituídas de vez enquanto.
Com certeza o aroma, que ainda não
esqueci e que também habitava gavetas de cômodas e outros espaços, era o cheiro
de meu templo sagrado que, de alguma forma, me mostrou o caminho real da minha
responsabilidade sobre a minha vida.
De forma precoce e sem muitos
preâmbulos descobri que viver a vida em paz exige apenas um travesseiro – com
ou sem alfazema, e as respostas de nosso coração.
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