segunda-feira, 13 de novembro de 2017

PODERIA SER EM QUALQUER LUGAR (Nídia Nóbrega)

Autora: Nídia Nóbrega

Poderia ser em qualquer lugar, mas terá de ter aquele cheirinho de alfazema recém-colhida. Cheiro que sempre fez parte da minha vida. Minha memória olfativa é maior que minha memória visual. Lembro das pessoas pelo cheiro e isso fica guardado. Muitas vezes na rua, sinto o perfume e fico olhando em volta procurando quem esse cheiro me lembrou.

Lembro da alfazema porque era o cheiro do travesseiro da minha infância, colocado na cabeceira daquela enorme cama de ferro, com lastro preenchido por um colchão de lã de carneiro e uma colcha de retalhos todos feitos por minha mãe. E nesse pequeno espaço – não mais do que 40 por 80 centímetros - repousava essa cabeça preenchida por mil caraminholas, sonhos, medos, frustrações e culpas ao final do dia, depois de um milhão de atividades. Mas esse cotidiano era singular para uma menina de nove ou dez anos.

Além da vida de criança, muito cedo conheci as obrigações domésticas após minha mãe ficar paralítica por lesões da coluna, cuja cura levou longos seis anos para ser encontrada. Então – uma infância com pouco tempo para criancices exigia espaço mental enorme para colocar todos os conflitos decorrentes dessa realidade. Enquanto outras brincavam eu dava injeções, fazia comida e limpava a casa, além de ir à escola. E o travesseiro cheiroso era o espaço maior de procurar e encontrar – quando encontrasse – respostas às minhas questões diárias. Por ser hiperativa, meio briguenta, que falava mais palavrões que meninos e não se contentava com afetos truncados e socialmente corretos, os conflitos internos e externos eram exponencialmente maiores do que qualquer criança. 

E o travesseiro era o campo santo para sepultar vontades nunca satisfeitas, sonhos irrealizáveis, espaços vazios de afeto e de segurança. Que criança se sentiria segura num lugar onde a mãe poderia morrer disso ou daquilo, tantas vezes ia e voltava do hospital? Lá eu chorava, rezava, sentia raiva - e culpa de ter raiva -  solidão, saudade, e fantasiava um mundo que não fosse aquele cheio de exigências com as quais eu não tinha forças de lidar. Era no meu travesseiro com cheiro de alfazema, cujos raminhos eram colocados dentro do forro para perpetuar o bom cheiro, que vivia o meu mundo particular. Não havia escolha. Até mesmo porque sestear, que eu odiava, era obrigada a fazer.

Foram anos dormindo na mesma cama e no mesmo travesseiro. E o cheiro de alfazema tinha significado de pausa e descanso. Ou de abandono ou de resgate. O que era raro num espaço árido de olhares mais aprofundados para os pequenos que não fosse comida, roupas, escola e recomendações infindáveis de bom comportamento.

Hoje, habitando outros mundos e depois de dormir em muitos travesseiros, sempre que escolho a cama para administrar as emoções pendentes, chorar perdas, medos ou buscar respostas, fica ainda uma vontade enorme de sentir o cheiro da alfazema. Não dessas de aromatizantes industrializados compradas em perfumarias. Mas daquelas folhinhas que eram costuradas num bolsinho da capa do travesseiro e substituídas de vez enquanto.

Com certeza o aroma, que ainda não esqueci e que também habitava gavetas de cômodas e outros espaços, era o cheiro de meu templo sagrado que, de alguma forma, me mostrou o caminho real da minha responsabilidade sobre a minha vida.

De forma precoce e sem muitos preâmbulos descobri que viver a vida em paz exige apenas um travesseiro – com ou sem alfazema, e as respostas de nosso coração.

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