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Autora: Nídia Nóbrega |
Cena I
O pé dói
naquele chinelo de dedos gasto batendo no asfalto. Ou melhor, se arrastando.
Porque ainda falta um monte para chegar em casa nessa noite de cansaço e fome.
O dia
todo bateu de porta em porta pedindo emprego com sua carteira molhada de suor, mas
que comprova seu passado de trabalhadora. Depois, desanimada, só pedia serviço
em troca de diária e, no final do dia, um copo de água e restos de comida que
carregava naquela sacola insalubre, mas significativa.
No bolso
dinheiro nenhum para o transporte. E nenhuma esperança ou expectativa de que
amanhã a coisa melhore.
Nem ousa
se olhar nos reflexos das vitrines. Desgadelhada, pé encardido, chinelo gasto,
roupa azeda e descombinada. Uma figura que inspira mais medo e asco do que
compaixão.
E aquela
dor na boca do estômago junto com o bafo do bucho vazio.
Mas não é
a dor da fome. Que essa já virou náusea e depois sumiu. Mas a dor da resposta
que não terá ao chegar no barraco e ler, nos olhos das crianças, a pergunta
esperada.
A dor de
um silêncio que se abaterá por mais um dia e que varrerá para baixo da rede o
sonho não só da comida na mesa, mas de uma infância minimamente feliz.
Uma
fisgada cruel de quem não pode dar aos seus filhos uma chance de serem apenas
crianças saciadas em um dia de Natal igual ao de todos os outros, com presentes
e risos.
Eles não
cobram, não choram, nem pedem. Têm uma consciência dura da ausência real de
tudo - nem sonhos e nem infância.
Apenas
fome, solidão, desencanto e silêncio quebrado pelo barulho do chinelo do
asfalto.
Cena II
Na sala o
enorme pinheiro e sacolas e sacolas de presentes misturados com a decoração,
luzes, bolas, fitas, balões.
A
geladeira cheia de comidas, bebidas, sobremesas.
Tudo
impecável. E silencioso.
O
telefone toca e os recados se sucedem com desejos os mais variados, risadas e
brincadeiras ficam armazenados na caixa de recados.
Uma casa
cheia de ausências e silêncios.
No quarto,
deitada em sua cama linda, vestida para matar (ou morrer), segura na mão o
vidro vazio de remédios para dormir. Tomou todos. Não esqueceu nenhuma das
bolinhas milagrosas que acalmam sua raiva e desencanto.
Foram
dias de compras, convites e expectativas.
Não
esqueceu nenhum dos amigos da empresa, do clube, da academia e do bar.
Seria a
sua maior festa e exigiu tantos preparativos que esqueceu de avisar pais e
irmãos que não iria passar com eles esse ano.
Sempre a
mesma coisa, aquela ceiazinha chinfrim, sem bebida boa e aqueles pacotinhos de
lembrancinhas de um e noventa e nove lá da periferia.
Apostou
num cenário novo.
Tudo
organizado esperou... esperou... esperou... E não apareceu ninguém da sua
turma. Sequer atenderam suas ligações.
Nem o "rolinho",
cujos encontros “calientes” preenchiam todas suas noites da semana.
Nem o
chefe que emitia sinais de interesses extras.
Nem as
amigas com quem dividia suas compras e roupas sem uso.
Ninguém.
A única
presença tardia foi do corpo de bombeiros chamado por um senhor simples que
veio no meio da noite, preocupado, saber de sua filha.
Cena III
Bonitão, simpático,
mas discreto. Esse é o conceito de quem trabalha com ele.
E ateu.
Deus do céu, ser ateu inibe qualquer possibilidade de chamá-lo para participar
das festas natalinas da empresa ou dos colegas.
E ele nem
liga porque se nega a participar delas. Defende seu direito à descrença com
unhas e dentes. E não aceita ser hipócrita por conveniência.
Então,
enquanto todos comem e bebem, festejando o Natal esse cara descrente, que não
frequenta igrejas e que nunca aprendeu a rezar no orfanato onde foi criado, nem
entender de família e afetos, está se preparando para sua rotina de todo o mês.
Com uma
roupa simples, organiza seu acervo de pacotes, lota o porta malas de seu carro
e ganha as ruas.
Os
vizinhos do condomínio apostam que visitará familiares no interior.
E lá vai
ele entregando lanches e roupas novas e trocando abraços e gentilezas com os
moradores de rua por quem passa todos os dias a caminho do trabalho e que, como
ele, fazem parte do cenário invisível.
Depois,
volta em casa e pega sua segunda carga, e viaja por quase duas horas até a
cidade vizinha, onde deposita, silenciosamente, na porta de um abrigo, roupas,
brinquedos, doces e risos amanhecidos aos meninos que ali habitam.
E volta para
casa saciado, pleno, rindo. Feliz.
O
sentimento é a alegria de compartilhar. Hábito mensal de plantar esperança. A
que lhe foi negada em cada dia de Natal de sua infância.
Cena IV
Silêncio
total na casa. Num cantinho da sala um abajur faz seu papel de oferecer
iluminação sutil.
Um cômodo
com cheirinho de limpeza, mas sem nenhum tipo de decoração a não ser um
conjunto exíguo de móveis.
Na outra
peça da casa, uma cama de casal onde se aninham dois corpos que comungam um
espaço milimetricamente dividido de lençóis e cobertas.
E, entre
eles, um bebê pequeno, de poucos dias, suga todos os seus sentimentos e a
quietude de quem vela por seu sono e seu conforto.
Nada de
muitas palavras – eles apenas sorriem ao olhar aquele montinho de gente
totalmente vulnerável, mas que está protegido por uma barreira de amor
intransponível.
O
silêncio não é doloroso ou triste, mas repleto de promessas, encantamento,
felicidade, esperança, ternura.
Tudo ali
poderia ser interpretado de forma equivocada.
Mas essa
imagem é desmentida pela ternura com que aquelas mãos se unem em
torno daquele pacotinho que produz sons e mostra uma força vital imensa ao
mexer seus bracinhos, sugar com força a mamadeira, ajustar seu corpo ao espaço
que lhe cabe nessa cama.
Nenhuma árvore,
nenhuma bola colorida, nenhum pacote de presente.
Nada. Aquele
espaço só é preenchido por um significado – o amor e o encantamento com a
chegada daquele bebê.
Um
recém-chegado que significa promessa de proteção, comprometimento, cuidado e
esperança para dar razão a todas as escolhas daquelas duas vidas que
conquistaram o direito a essa adoção sem serem julgados pelo seu gênero ou
posturas. Mas que conseguiram, pela sua coerência, o direito da paternidade.
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