quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Cenas natalinas ou “dezembrianas” (Nídia Nóbrega)


Autora: Nídia Nóbrega



Cena I
O pé dói naquele chinelo de dedos gasto batendo no asfalto. Ou melhor, se arrastando. Porque ainda falta um monte para chegar em casa nessa noite de cansaço e fome.
O dia todo bateu de porta em porta pedindo emprego com sua carteira molhada de suor, mas que comprova seu passado de trabalhadora. Depois, desanimada, só pedia serviço em troca de diária e, no final do dia, um copo de água e restos de comida que carregava naquela sacola insalubre, mas significativa.
No bolso dinheiro nenhum para o transporte. E nenhuma esperança ou expectativa de que amanhã a coisa melhore.
Nem ousa se olhar nos reflexos das vitrines. Desgadelhada, pé encardido, chinelo gasto, roupa azeda e descombinada. Uma figura que inspira mais medo e asco do que compaixão.
E aquela dor na boca do estômago junto com o bafo do bucho vazio.
Mas não é a dor da fome. Que essa já virou náusea e depois sumiu. Mas a dor da resposta que não terá ao chegar no barraco e ler, nos olhos das crianças, a pergunta esperada.
A dor de um silêncio que se abaterá por mais um dia e que varrerá para baixo da rede o sonho não só da comida na mesa, mas de uma infância minimamente feliz.
Uma fisgada cruel de quem não pode dar aos seus filhos uma chance de serem apenas crianças saciadas em um dia de Natal igual ao de todos os outros, com presentes e risos.
Eles não cobram, não choram, nem pedem. Têm uma consciência dura da ausência real de tudo - nem sonhos e nem infância.
Apenas fome, solidão, desencanto e silêncio quebrado pelo barulho do chinelo do asfalto.

Cena II
Na sala o enorme pinheiro e sacolas e sacolas de presentes misturados com a decoração, luzes, bolas, fitas, balões.
A geladeira cheia de comidas, bebidas, sobremesas.
Tudo impecável. E silencioso.
O telefone toca e os recados se sucedem com desejos os mais variados, risadas e brincadeiras ficam armazenados na caixa de recados.
Uma casa cheia de ausências e silêncios.
No quarto, deitada em sua cama linda, vestida para matar (ou morrer), segura na mão o vidro vazio de remédios para dormir. Tomou todos. Não esqueceu nenhuma das bolinhas milagrosas que acalmam sua raiva e desencanto.
Foram dias de compras, convites e expectativas.
Não esqueceu nenhum dos amigos da empresa, do clube, da academia e do bar.
Seria a sua maior festa e exigiu tantos preparativos que esqueceu de avisar pais e irmãos que não iria passar com eles esse ano.
Sempre a mesma coisa, aquela ceiazinha chinfrim, sem bebida boa e aqueles pacotinhos de lembrancinhas de um e noventa e nove lá da periferia.
Apostou num cenário novo.
Tudo organizado esperou... esperou... esperou... E não apareceu ninguém da sua turma. Sequer atenderam suas ligações.
Nem o "rolinho", cujos encontros “calientes” preenchiam todas suas noites da semana.
Nem o chefe que emitia sinais de interesses extras.
Nem as amigas com quem dividia suas compras e roupas sem uso.
Ninguém.
A única presença tardia foi do corpo de bombeiros chamado por um senhor simples que veio  no meio da noite, preocupado,  saber de sua filha.

Cena III
Bonitão, simpático, mas discreto. Esse é o conceito de quem trabalha com ele.
E ateu. Deus do céu, ser ateu inibe qualquer possibilidade de chamá-lo para participar das festas natalinas da empresa ou dos colegas.
E ele nem liga porque se nega a participar delas. Defende seu direito à descrença com unhas e dentes. E não aceita ser hipócrita por conveniência.
Então, enquanto todos comem e bebem, festejando o Natal esse cara descrente, que não frequenta igrejas e que nunca aprendeu a rezar no orfanato onde foi criado, nem entender de família e afetos, está se preparando para sua rotina de todo o mês.
Com uma roupa simples, organiza seu acervo de pacotes, lota o porta malas de seu carro e ganha as ruas.
Os vizinhos do condomínio apostam que visitará familiares no interior.
E lá vai ele entregando lanches e roupas novas e trocando abraços e gentilezas com os moradores de rua por quem passa todos os dias a caminho do trabalho e que, como ele, fazem parte do cenário invisível.
Depois, volta em casa e pega sua segunda carga, e viaja por quase duas horas até a cidade vizinha, onde deposita, silenciosamente, na porta de um abrigo, roupas, brinquedos, doces e risos amanhecidos aos meninos que ali habitam.
E volta para casa saciado, pleno, rindo. Feliz.
O sentimento é a alegria de compartilhar. Hábito mensal de plantar esperança. A que lhe foi negada em cada dia de Natal de sua infância.

Cena IV
Silêncio total na casa. Num cantinho da sala um abajur faz seu papel de oferecer iluminação sutil.
Um cômodo com cheirinho de limpeza, mas sem nenhum tipo de decoração a não ser um conjunto exíguo de móveis.
Na outra peça da casa, uma cama de casal onde se aninham dois corpos que comungam um espaço milimetricamente dividido de lençóis e cobertas.
E, entre eles, um bebê pequeno, de poucos dias, suga todos os seus sentimentos e a quietude de quem vela por seu sono e seu conforto.
Nada de muitas palavras – eles apenas sorriem ao olhar aquele montinho de gente totalmente vulnerável, mas que está protegido por uma barreira de amor intransponível.
O silêncio não é doloroso ou triste, mas repleto de promessas, encantamento, felicidade, esperança, ternura.
Tudo ali poderia ser interpretado de forma equivocada.
Mas essa imagem é desmentida pela ternura com que aquelas mãos se unem   em torno daquele pacotinho que produz sons e mostra uma força vital imensa ao mexer seus bracinhos, sugar com força a mamadeira, ajustar seu corpo ao espaço que lhe cabe nessa cama.
Nenhuma árvore, nenhuma bola colorida, nenhum pacote de presente.
Nada. Aquele espaço só é preenchido por um significado – o amor e o encantamento com a chegada daquele bebê.

Um recém-chegado que significa promessa de proteção, comprometimento, cuidado e esperança para dar razão a todas as escolhas daquelas duas vidas que conquistaram o direito a essa adoção sem serem julgados pelo seu gênero ou posturas. Mas que conseguiram, pela sua coerência, o direito da paternidade.

Nenhum comentário:

Postar um comentário