Autora: Mara Lúcia Bedin
O latido dos cães, lá longe, anunciava
a chegada de estranhos à casa. O dia estava claro. O vento fresco arrepiava a minha
pele, embaraçava e me desalinhava os cabelos longos, atrapalhando minha
visão. O sol morno me aquecia e me libertava do frio da manhã. Olhava em volta, à frente, uma
plantação de milho com as espigas já gordinhas e cabeludas, muitas delas... À
direita, espalhadas desordenadamente, para contrapor com a organização militar
da plantação ao lado, havia muitas flores do campo coloridas; margaridas,
gérbera, ervilha de cheiro, flor de cenoura. Girassóis e copos de leite ao
longo das margens do riacho, que escorregava silencioso. As abelhas e os
colibris dançavam velozes sobre as flores, inventando passos estratégicos para chegar
ao desejado néctar.
Lembro; havia mais à frente uma
floresta de araucárias, linda, que desapareceu depois. Nunca mais cheguei a ver
uma assim tão majestosa, e a bem da verdade, nunca mais vi nem mesmo outra qualquer floresta de araucárias por aquelas paragens. Felizmente, vi há pouco tempo em
Urubici uma floresta de araucárias se reconstituindo em meio à Mata Atlântica,
mas não com a formosura daquela primeva visão infanta.
Lá na minha mata, bandos de papagaios e ararainhas azuis faziam desenho no céu de
anil, enquanto brincavam de pega-pega, em grande algazarra, distribuindo suas
cores verdes e azuis. Podíamos ouvir o som do Pica Pau trabalhando e o canto do
Zecapassarinho amarelinho; como ele era bonitinho! Era uma grande orquestra da natureza. Imagens que ficaram esquecidas na minha
memória e que hoje, ao me lembrar do som do motor deste trator, despertou-me do fundo atávico da minha vida.
Era férias de verão, e eu adorava
sair com o meu pai para o interior de Chapecó. Ele ia fazer demonstração de um
trator pequenino, de fabricação japonesa, uma novidade que atendia por um nome estranho: Tobata.
- “Esses japoneses precisam
fazer tudo bem pequeno, porque na terra deles, tudo é pequeno. Imagine que eles
moram num pequeno arquipélago rochoso, e mesmo assim se tornaram uma potência
depois da guerra. Aprenderam tirar leite de pedras! Eles estão até produzindo
relógios sem corda, mas para mim", dizia meu pai, "os melhores relógios serão sempre os feitos na Suíça, da marca Oméga.”
Ele tinha um magnífico exemplar e gostava muito deste relógio,
a caixa de prata, redondo, preso a uma corrente, que ele guardava no bolso da
calça; a outra extremidade da corrente estava fixada na presilha do cinto. Quando
ele se foi para a outra dimensão da eternidade, eu guardei comigo o relógio e as abotoaduras de prata. As
abotoaduras eu ainda as tenho, mas cadê o relógio? O relógio tão importante, eu perdi... Não sei
onde foi parar... Nunca mais o encontrei...
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As marcas do tempo não apagaram a lembrança boa que trago de meu pai. |
Eu adorava correr pela terra vermelha da minha infância, enquanto meu pai apresentava e fazia demonstrações com o Tobata; e adorava mais
ainda quando ele me convidava para subir no trator. Imagine a minha alegria! Eu
sentada e ele manobrando. Tudo era bom, aquela atmosfera saudável do campo; e papai só para mim, os meus outros quatro irmãos concorrentes estavam longe, em casa, na escola, sei lá... Só sei que o pai era só meu, naquele momento! E me via nitidamente ali, presente, ajudando ele a vender o trator aos seus clientes produtores rurais. Nas minhas férias de verão, durante a escola
básica, muitas vezes acompanhei meu pai em suas pequenas viagens aos arredores
de Chapecó, contribuindo para "aumentar a renda familiar."
Que incrível máquina é mesmo o
nosso cérebro, as nossas memórias, essas de longo tempo, principalmente... Quando
relembro, sinto-me lá. Tento me reinventar e me redescubro como o louco que
retorna à caverna de Platão trazendo a vivência tão rica do que existe lá fora. Na minha caverna, não me
interesso pelas sombras; ali a luz do sol entra livre e sem barreiras, deixando meus olhos alcançarem a magnífica beleza das pedras rubis vermelhas, a areia fina dourada, e a única arca que existe aqui está entreaberta, deixando ver as pérolas e madrepérolas.
Rajadas de ar
fresco por aqui circulam, prenunciando mudanças, as quais eu posso sentir no meu
corpo. Percebi que na dança da vida,
consciente ou não, sigo tentando reproduzir os gestos e exemplos de meu pai. Busco a minha essência e a
percebo contida dentro das lembranças dele, que ainda guardo comigo com carinho tão grande, que chego a perceber nitidamente meu
coração vibrar e o amor pulsar. E assim eu reverencio a imensa grandeza de meu pai; e
agradeço a vida que ele me deu.
Corri junto com vc. Lindo texto.
ResponderExcluirQue bom que você gostou , Nídia.
ExcluirSimplesmente emocionante! Parabéns por tanta sensibilidade, minha querida.
ResponderExcluirObrigada, querido.
ExcluirEm segundos passou um filme de minha infância. .parabéns
ResponderExcluirQue texto inspirador, Mara! Que linda homenagem ao seu querido pai! De lá, ele, com certeza, deve estar aplaudindo a sua homenagem e a sua criatividade.
ResponderExcluirObrigada Hélio. EU sempre fui muito ligada a ele.
ExcluirRealmente, lindo demais e muito bem escrito. Fiquei muito orgulhosa, mãe!
ResponderExcluirDe verdade.
Me deu saudade do meu avô que pouco conheci. As lembranças dele são quase um sonho... um sonho bom.
Parabéns, continue escrevendo :)
Filha, que bom que você gostou. Está registrado aqui o começo da sua história. Um abraço com amor.
ResponderExcluirLindíssimo Mara. Você tem q continuar a escrever. Também lembrei dessas viagens com o pai para vender Tobata. Cada vez ele levava um de nós. Eu também gostava muito, mas eu ficava junto dele rezando para q ele conseguisse vender porque eu sabia o quanto a familia precisava. Beijo. Parabéns.
ResponderExcluirAbriu no face do Paulo. Não entendi
ExcluirPercebeu q quem comentou fui eu, sua irmã. Bj
ResponderExcluirQ texto lindo, Mara! Não a conheço, mas me vi na sua história... na reverência por seu pai, nos detalhes da sua infância, tão incrivelmente parecida com a minha... voltei para aqueles tempos e aquelas paisagens de carona na sua história! Parabéns!
ResponderExcluirObrigada.Emociono-me saber que minha história também tocou seu coração. Um abraço.
ResponderExcluirLindo e emocionante...me senti lá, nestas paragens vibrando com tua alegria!
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ExcluirQuerida Mara, fico feliz em perceber sua alma leve, rica, fluente. Ah as palavras! Libertam, constroem, reconstroem, sulcam o tempo....Que bom vê-la assim, resgatando tudo o que de melhor existe em ti e que talvez estava escondido....esquecido!!!!
ResponderExcluirDanada ocê! Conseguiu me tirar do shoping Tijuca direto para as araucárias... morri de inveja do pai só seu! Que delicia.
ResponderExcluirMuito lindo sister Mara!!! Entrando para academia de letras dos Bedins?? Parabéns! Lindo texto!
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